Céu de estrelas
Céu de estrelas
A imensidão dos pampas assustava. Era um verde sem fim, meio amarelado pela época do ano, com subidas e descidas que pareciam ondas do mar. Um pequeno riacho de águas cristalinas e geladas cortava por entre pedras aquele paraíso, uma solitária figueira, que pelo tamanho e galhos, deveria chegar perto de um século de existência, dominava a paisagem.
O velho gaúcho escolheu ali a sua parada. No lugar havia vários sinais de que muitos viageiros já haviam lá pousado , pedras negras pelo carvão, um resto de lenha, até um gancho de ferro para pendurar a chaleira por ali havia. Nosso amigo chegara ao entardecer, meio noite, de um céu azul e limpo, com uma lua quase cheia que tudo iluminava; feita a fogueira, para aquecer o corpo e a água do mate, sentou-se sob a via láctea, como se ela fosse seu teto, e meio sem perceber, naquele momento, era parte de um grande poema de beleza sem fim, escrito por Deus e dado de presente para nós, homens, que para ler esses versos só bastava ter o coração aberto, sem mágoas, onde sonhar e amar não fosse obrigação, mas prazer.
Ao colocar mais lenha no fogo e mexê-la para que melhor assentasse, subiram umas labaredas de fumaça e de pequenas fagulhas , que se misturaram à uma imensa quantidade de estrelas e com elas dançaram um minueto de incrível beleza, que arrepiava a alma e adoçava a mente, de onde não se podia pensar, se não, em paz, amor, saudades e aventuras.
O gaúcho muito se orgulhava de duas coisas, das muitas que adquirira durante sua vida por conta de seu trabalho. Uma era sua capa gaúcha de pura lã, com costura dupla e feita com muito esmero , que trocara por um boi carreiro e do que não se arrependia e que em dias de frio ou chuva cobria todo seu corpo e ainda protegia o animal. Nos acampamentos, como agora, servia de cobertor e dos bons. A outra coisa era um malhado, que pegara desde potro e dele fizera seu melhor amigo e confidente, ensinado no capricho, nas feiras e festas pelas cidades. Era a atração, principalmente para as prendas, que o guapo cumprimentava com um relinchar malandro e até se ajoelhava, para bonito fazer. Nas noites pelos campos, parceiro de banhos de lua e confidente atento e sempre calado, não podia ser melhor.
Aquela noite, o andadeiro, parecia um pouco desassossegado, um aperto no peito fazia que ele tirasse sons tristes de seu violão, seu outro companheiro, esse sim, falava, chorava e vivia lembrando das histórias de amor e paixão, que tinham vivido juntos. Na noite, não muito fria, sob aquela lua e embaixo daquele céu de estrelas, o pensamento vagava e ia parar muito longe numa estância nunca esquecida, onde ao meio de tantas aventuras do passado e do futuro, que ainda viria, o doce encanto da sinhazinha de tranças e vestido rodado, nunca mais saíra de seu pensar.
Dizem que o amor só bate uma vez no peito de um homem e que cabe a ele a sabedoria de agarrá-lo ou a triste sina de deixá-lo ir. No seu caso, a guria de família rígida, que não permitiu que ele a carregasse por essa vida de meu Deus que ele vivia, e não por ela, mas pelos costumes de seus pais e também por ele, não querendo assentar em um lugar fixo e temeroso de se arrepender com o passar do tempo e achando-se sem estrutura para montar casa e educar os guris e prendas que viriam, deixou para traz o grande amor, fisicamente, pois em seu íntimo nunca mais dela se afastara. Muitos outros casos, mas nunca mais um querer bem e naquelas paradas, em noites de lua clara ou de chuva fria e cortante, era dela que se lembrava e não da última aventura que há tão pouco se metera, muito mais pelo costume do que por precisão.
Tinha no íntimo, como segredo, a vontade de voltar para aquele lugar e ver se ela ainda o esperava, mas e se ela já tivesse criado família? Na certa outro homem a teria conquistado! Talvez tivesse filhos? Com certeza, teria se tornado exemplar dona de casa e administradora sem falhas de sua querência; azar o dele, não tivera coragem em época passada, não a teria agora para botar essas dúvidas em pratos limpos.
Soltando uma demorada baforada de seu palheiro, engolindo mais um trago de mate, querendo achar o sono, que não vinha, olhou longamente para aquelas planícies e pensando no que faria ao amanhecer, divagou e quase deixou a fogueira se apagar. Colocou mais lenha no fogo, com certeza a última. Já que era madrugada e no raiar do dia iria para outra parada atrás de um gado para cuidar ou de um cavalo xucro para domar. Também tinha fama de bom carneador e seu charque era apreciado por toda região. Torcia para que o dia chegasse logo. À noite trazia muitas lembranças e dores que não gostava de sentir, melhor as quedas do cavalo bravo, o suor escorrido na lida ao sol, o embrenhar-se pelas matas do que aquele marasmo ao pé da fogueira, que não o deixava olhar para fora, mas só para dentro do seu ser.
Um último suspiro, um ai de dor invisível e poucas horas de sono. No alvorecer, cuidou do malhado, arrumou a trocha, recolheu as tralhas e lá se foi rumo a algum lugar mais longe ainda, que deixasse para trás e cada vez mais distante a dor de amor que mascava e engolia com o jiló da saudade.
Sol a pino, ele no carreador rumo a qualquer lugar, rumo ao desconhecido, rumo ao nada. Agora acordado é que sonhava. Sonhava em ter paz, sonhava em poder acordar ao lado de um alguém, de dividir uma chávena de café quentinho, um talho de carne de sol e finalmente viver aquela fantasia de que tudo de bom é a dois. Se essa verdade não condiz com os fatos, não é culpa do dito e sim do não dito. Deus, todo poderoso e misericordioso , nos dá muitas chances nessa vida e muitas vidas na nossa história, cabe a nós agarrá-las para ser feliz.
Mas não se desespere, sempre há tempo e se não nessa, haverás de encontrar o seu meio ausente, em próxima estadia por aqui. Eu e o gaúcho de nossa história, esperamos e rezamos por isso.
Carlos Roberto Martini
Itapoá 15/06/2014