Uma doce vida.
Uma doce vida.
Manhã muito fria e de um branco imenso, a dominar as coisas e os lugares. Aproveitando o derradeiro fogo, fervia a água para a última rodada do chimarrão. Tudo estava pronto para a partida e no máximo mais um dia e meio, estariam na estancia do Coronel Galdino, que os esperava, para uma empreitada de mais ou menos um mês, onde marcariam os bezerros novos, nascidos durante o verão, curariam as vacas com bicheiras e cascos quebrados, revisariam as cercas e eliminariam as onças, se elas estivessem atacando os pequenos bezerros. Como já faziam há anos, trabalhando uns tempos para cada patrão, corriam quase todos aqueles pampas e planaltos, aumentando cada vez mais, as fortunas dos estancieiros e os “causos” para depois contar, nas rodas de viola em frente as fogueiras, pelos céus desse mundo, em que o Patrão Maior, dono e senhor de tudo e de todos, ia lhes dando. Vida livre, rédeas soltas, ao fim de cada jornada cumprida, dois ou três dias de farra em uma festa qualquer, em uma querência imaginária, na companhia de “amores eternos”, que uma semana depois, não se lembrariam nem do nome, só o cheiro bom das prendas, a maciez das mãos e o carmim dos lábios. Algumas vezes até dava vontade de um dia voltar, dependendo dos caminhos tomados, das rédeas do acaso, de para onde o pingo levasse. Vez ou outra, cumpriam a promessa do retorno, para as gurias em que saudades deixaram. A pequena tropa, de cinco galderios, não se dispersava. Como irmãos, já há vários anos, corriam todo o sul e tinham até fama e respeito, pelo ótimo trabalho que faziam. Alguns fazendeiros marcavam com antecedência os seus serviços, não faltando nunca o que fazer para a tropa de amigos, e assim iam ganhando seu sustento, no que gostavam e de maneira livre. Só dois deles, Garibaldi e Juvêncio, tinham família, mulher e filhos a quem vez ou outra, entre um trabalho acabado e outro para começar, fugiam por uma semana, se tanto, para ver e matar as saudades das crias e levar provisão e soldo para as esposas, já calejadas pela vida de seus parceiros e conformadas com o destino, de sós, que levavam. Ele, Zé Pedro e Dorival, não tinham ninguém que os esperasse. Ele particularmente, tinha a mãe, velhinha e de quem tinha saudades, que visitava lá uma vez ou outra, quando por perto da casa da irmã, passava. Ela e o cunhado cuidavam tão bem da prenda velha, que nem remorso sentia, de ficar tanto tempo sem vê-la. Só temia, em uma dessas visitas, ter que levar flores em um cemitério, e não ter a face enrugada, por tanta lida e tanta vida, para beijar e a benção pedir. Mas isso tudo era coisa que só se pensava, parado e não tendo o que fazer. Apagaram a fogueira, enterraram o lixo, montaram seus cavalos e por pura intuição, seguiram para o sul. O sol, nessa época do ano, raramente aparecia pela manhã, e a densa névoa branca impedia que a visão os orientasse. Mas o instinto e os anos de experiência, melhores que uma bussola, levava-os sempre ao caminho certo e procurado. Já sobre o cavalo, olhou e beijou a foto, da Prenda Maior, mãe do filho de Deus, que trazia dentro do chapéu. De leve cutucou com a espora a anca do bruto, e num trotear firme e seguro, seguiram para mais um capitulo da novela, chamada” vida”.
Carlos Roberto Martini
Itapoá, março de 2015